Wednesday, May 02, 2007

Foi Tudo o Fim

“Enaltece as subidas da vida e esquece as descidas”

Pedro nunca imaginou que tudo fosse acontecer. Nunca passou pela sua cabeça tamanha desilusão. Ele chegou assim que o sol se pôs e a noite se aproximou. Já eram 20 horas e o dia ainda estava claro.- Esse horário de verão acaba confundindo a gente, dizia!..... não sei porque inventaram.! - Copiaram dos europeus. Dizem alguns técnicos que é necessário para a economia de eletricidade e que o setor passou por grande dificuldade de geração por falta de investimento do governo, enquanto outros discordam, não oferecendo, porém, qualquer solução plausível; apenas discordam. Pedro era apenas um brasileiro no meio de milhões que não têm poder de manifestar-se em coisa alguma. - A gente só ouve e lê que o Instituto Tal fez a pesquisa disso e daquilo-......Ele nunca foi parado na rua para sugerir ou opinar sobre um determinado assunto por qualquer órgão de pesquisas. Dizia sempre aos amigos, quando um assunto importante, como, por exemplo, pesquisa de opinião sobre eleições, era divulgada. - E olha que eu ando pelas ruas, repetia. O horário de verão é deveras inconseqüente para a hora de deitar e levantar. A hora de acordar é ainda escura, e a hora de deitar ainda é clara. Agora mesmo ainda é dia e já passa das vinte horas.

Nesta época de verão as chuvas em forma de tempestades são violentas e perigosas. Elas trazem sofrimento àqueles moradores das margens ribeirinhas de rios e córregos. É o caso de Pedro da Carroça, Pedro Ferreira da Silva Porto, esse era seu verdadeiro nome, quando aqui desembarcou de um ônibus vindo de Pernambuco, em janeiro de 1950. Assim que chegou deu sorte de conseguir emprego de auxiliar de pedreiro numa empresa construtora de edifícios. Permaneceu no emprego por 10 anos. Seu salário não era suficiente para fazer uma poupança e garantir o futuro. Nada guardou. Perdeu o emprego a partir do momento em que começou fazer exigências para aumento de salário. Desde então só penou! Pastou! Emprego nem pensar! Sem emprego e sem ter onde morar começou fazer parte das estatísticas de gente excluída da sociedade. Seu sonho acabou! Sem ter para onde ir e acomodar a família foi morar na favela, único lugar que conseguiu através de amigos. Pedro não tinha endereço...A rua aonde morava não tinha nome, o barraco não tinha número. Pedro não existia. Não tinha referência e nem identidade. Não tinha conta em banco....não tinha conta de água, de luz, de telefone...aliás a eletricidade dos barracos vinha através de gambiarra que os moradores da Favela costumam fazer.É perigoso, mas não há alternativa. Todos precisam da luz. “Faça-se a luz e a luz se fez, assim disse Deus na formação do mundo”.Alguns moradores da Favela do Abrigado não conseguem nem ter o básico dentro de casa: arroz, feijão, carne...quanto mais pagar conta de luz elétrica. Pedro fazia parte dos excluídos. Servia apenas para figurar nas estatísticas dos miseráveis moradores de favela.

Quando Pedro era jovem, estudante da escola rural na sua pequena cidade do interior de Pernambuco, ostentava alguma preferência por partidos políticos de esquerda, mormente o PCB, apesar de saber que a esquerda no Brasil só existe quando seus líderes estão presos. Quando estão na cadeia fazem planos de união, que vão se coligar, formar uma grande agremiação partidária de centro-esquerda e outras idéias. Balela! Quando ganham a liberdade cada um vai para seu canto e funda seu próprio bloco. Pedro não imaginava que tudo isso fosse acontecer! Ele morava no décimo barraco da Rua sem nome, na Favela dos Abrigados. Esse era o nome do bairro, se é que poderia chamar aquilo de bairro. O endereço servia apenas de orientação para seus vizinhos e amigos não confundirem o barraco com outro. Não era referência para provar sua cidadania. A Rua não existia nos cadastros dos órgãos públicos. Seu barraco tinha quarto onde dormiam seus quatro filhos, mais ele e a mulher, cozinha pequena e um banheiro também de dimensões minúsculas. Era tudo o que tinha como bem patrimonial. A construção do barraco foi possível graças à ajuda humanitária de seus vizinhos. Cada um trouxe um pedaço de madeira compensado, às vezes de origem clandestina, remanescentes de obras dos Poderes Públicos em construção no entorno da cidade grande, como Metrô, escolas, etc. Algumas delas foram surripadas na calada da noite. - Roubar do governo não é crime, dizia ele. – Todos roubam e ninguém toma providencia alguma. Ninguém vai preso. Viagens e mordomias dos governantes são as pessoas honestas que pagam, através de impostos que deveriam reverter-se em beneficio do povo, principalmente dele e de outros tantos desamparados na vida. Pedro não era cidadão. Estava isento de qualquer tributo. Não recebia nem a bolsa família,....

Mas nada disso era motivo para lhe tirar o humor. Vivia sorrindo, feliz da vida. Queria apenas ser um cidadão, mesmo carregando sua carrocinha de papelão que catava pelas ruas de São Paulo, pesada e desconfortável. Desejava apenas ter o suficiente para comer três vezes ao dia como prometera o Presidente da República durante a campanha eleitoral.

Tinha mulher e filhos, ainda menores de idade. Não tinha emprego fixo e nem renda familiar. Vivia de bicos que fazia aqui e acolá, quando conseguia. Quando não arranjava alguma coisa para fazer, como pintura, serviço de pedreiro ou jardinagem, se virava catando papelão, latinhas de refrigerantes e cervejas pelas ruas. Sua vida, assim como a de tantos outros brasileiros, era dramática, um desafio à dignidade humana. Ele driblava todos os percalços, desafiava as dificuldades e vencia todas as incertezas da vida com honestidade, dignidade e coragem, atributos que nunca lhe faltaram.

Naquela noite, ao chegar em casa, após atravessar a ponte de madeira que liga seu barraco à rua, tropeçou num pedaço de tábua exposto e quase caiu no córrego que circunda a favela e sobre o qual estão erigidas dezenas de palafitas. Não fosse a pronta ação de um vizinho, fatalmente teria caído naquelas águas escuras e fétidas.

Ao chegar ao barraco, a mulher Elvira e os filhos estavam a lhe esperar, famintos. Nada trazia além de um frango que havia ganhado ao ajudar descarregar o caminhão de um frigorífico. Ao menos o jantar daquela noite estava garantido.

Depois do jantar, foi deitar-se contemplando o brilho resplandecente da lua que penetrava através das frestas das tábuas do barraco. Dormiu e sonhou! O clarão da lua iluminava o barraco. Pedro sentia no sonho a claridade ardente daquela luz.

Via-se no sonho sentado ao redor de uma mesa, ao lado da mulher e dos filhos, numa noite de natal. Mesa farta: peru, galinha, coelho, lombo, frutas natalinas, farofa e carne de cordeiro. Até vinho tinha. Dois castiçais de três velas cada um fazia parte da decoração da mesa. Suas luzes eram incessantes e fortes.

Que ceia! Que noite! Que fartura! Sonhou feliz! O cansaço de tanto puxar a carroça foi seu inimigo crucial e responsável pele sono profundo. A luz forte das velas que via sobre a mesa, eram na verdade as chamas do fogo insano que consumia seu barraco.

Quando acordou, viu-se deitado numa cama, rodeado de enfermeiras apalpando-lhe o corpo queimado e dolorido. Perguntou pela mulher e filhos. Nada lhe responderam. Não lhe deram qualquer noticia do que havia acontecido, por mais que implorasse. Também não lhe disseram porque estava ali naquele hospital. Só sentia o corpo arder, Sabia que algo ruim havia acontecido. Sob efeito de calmante voltou a dormir.

Após quinze dias de internação no hospital público, Pedro voltou às ruas de São Paulo, puxando sua carrocinha, catando papelão e latinhas de cerveja e refrigerantes. Além de ganhar o sustento, ao mesmo tempo prestava serviço à prefeitura, recolhendo o material que fatalmente iria despencar nos rios e córregos da cidade. Contudo, a lembrança daquela fatídica noite não lhe saía do pensamento em momento algum. As noites seguintes, agora passadas embaixo de viadutos, já que seu barraco fora totalmente destruído pelo fogo, sentia o medo, a tristeza e o remorso. Remorso por ter dormido demais. Imaginava que se tivesse se mantido acordado, poderia evitar a tragédia. Por isso, de tanto se sentir culpado, buscou refúgio no álcool e nas drogas, vícios que sempre abdicou na vida. As noites seguintes mantinha-se acordado à base da cachaça e do crak, perambulando pelas ruas escuras e desertas da cidade.

Uma noite embebedou-se tanto, que ao levantar-se do leito da rua aonde caíra, sentiu os pingos gélidos do orvalho da madrugada caírem sobre sua cabeça ressecada do efeito etílico da noite anterior. Ele andava pelas ruas, absorto, como quem procura algo ou busca alguma coisa capaz de fazê-lo esquecer daquela trágica noite que fulminou sua família. Tentava esquecer, mas não conseguia, por isso vagueava sem rumo pelas madrugadas frias e desertas, quando só o vento úmido soprava-lhe os cabelos e sussurrava ao seu ouvido como se quisesse adverti-lo de algo que não conseguia entender. Pedro só queria esquecer o passado, riscá-lo da memória. Infelizmente, não houve tempo para isso. Mais uma vez o destino cruel, através das mãos de um motorista tão embriagado quanto ele, ceifou-lhe de vez a vida.

Foi-se o fim de Pedro.

J.Miranda Filho.

Natal de 2006.

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