Friday, July 17, 2009

O Retrato do Sertão – 4

O sol forte se escondeu indolente no horizonte apagando da memória do sertanejo mais um dia de esperança, enquanto implorou e rezou pela chuva que não veio. Já estamos no mês de julho e a vontade de Deus, mercê das novenas, rezas e procissões com São José roubado da igrejinha mais próxima não surtiram efeito. O jeito era esperar.

A “faveira” de vagens robustas e nutritivas era a única fonte de alimento que restava no sertão. Sua folhagem abundante e esparsa serve para o sertanejo abrigar-se do sol quente, enquanto alimenta o rebanho faminto, às vezes sua própria família. O juazeiro ainda ostenta suas folhas verdes desafiando a seca bravia. Alhures vê-se raras espécies de aroeiras com galhos secos iniciando a florada que logo mais se transformariam em fogueiras na noite de São João para assar o milho, a mandioca e a batata, sobras da safra do ano passado. O carimã que Mãe Crisalda preparou com esmero - convidada com antecedência para pular a fogueira e se tornar madrinha de Agapito - já se encontrava sobre a mesa de madeira rústica, para deleite dos convidados. Rumores já se ouviam a distancia, enquanto a canjica, o bolo de fubá e a broa estavam sendo preparados por Marilda e suas irmãs.

Agamenon, seus irmãos, “seu” Quincas”, Mãe Crisalda, Maninha e seu filho Zequinha - o Zé da Venda - e outros que já haviam chegado, aguardavam no terreiro em volta da fogueira o resto dos convidados.

O fogo ardia ferozmente, e sobre o carvão candente espigas de milho verde aguardavam o momento de serem consumidas. A fumaça incessante se espargia rapidamente pelo espaço, impedindo as estrelas difundir seu brilho sobre a noite escura. Mas nada disso era motivo para atrapalhar a festa do batizado de Agapito.

Esperavam por Sá Lorena e seu marido que estavam à caminho.

De repente alguém gritou lá da porteira.

-Sá Lorena e “seu” Juvenal estão chegando!

- Apeiem-se e acomodem-se, disse Agamenon num sorriso toste denunciando-lhe a falta de alguns dentes.

Sá Lorena e “seu” Juvenal apearam. Enquanto ela se dirigia à fogueira e juntar-se ao pessoal, ele amarrava o cavalo num pequeno tronco de oiti à frente da casa. Cumprimentou quem estava presente, e sentaram-se à mesa ao lado de Maninha e seu filho Zequinha. Sá Lorena que observava tudo logo deu por falta de Geraldina, a irmã mais nova de Agamenon.

- Cadê Geraldina?

- Ela foi até a casa de Zeca Vaqueiro convidá-lo, mas logo estará de volta, respondeu Maninha que de nada sabia.

- Como vai Maninha, perguntou “seu” Juvenal, antes de cumprimentar Mãe Crisalda, sentada do outro lado da mesa.

-Tô bem. Só o Zequinha que de vez em quando tem a mania de querer ir embora pra São Paulo...Isso me entristece e me deixa aperreada ... O pai não fala nada... Quando diz arguma coisa, pede pra eu deixar de ser besta porque é mió pra ele. Em São Paulo arruma emprego, estuda e pode ser argúem na vida, invés de roceiro.

-Tá certo o Juvenal, Maninha...deixe de ser tonta! Interrompeu Sá Lorena.

- Mas “seu” Juvenal eu fico cá na cabeça com meus miolos queimando de afrição.

- Tem que deixar Maninha, se for para o bem dele, respondeu “seu” Quincas que se aproximava da fogueira sob olhar reprovativo de Sá Lorena com quem teve desavenças por divisão de terra.

Com a chegada de Agamenon a conversa se encerrou e todos se aconchegaram em torno da fogueira.

Mãe Crisalda pulou o braseiro com Agamenon e o filho no colo. Deram três voltas ao redor da fogueira pedindo para que São João os reconhecessem como compadres, sendo ela a madrinha de Agapito.

Estava batizado o tataraneto que Nhá Marina não conheceu.

O batismo civil se daria dali a três meses ou mais, quando a chuva que tardou esse ano, trouxesse fartura e alegria. A crisma do menino eles aguardariam a chegada do Padre Fausto, da Paróquia de Angico, que visitava todos os lugarejos nessa época.

Madrugou, e todos os convidados embalados de alegria pelo efeito da “mardita”, se foram. Ficaram acordados conversando no oitão Agamenon e seu irmão Agaciel, à espera de Geraldina que demorava chegar.

O Retrato do Sertão – 3

Anoiteceu em Poços dos Anjos. De madrugada, sob a luz do luar que se infiltrava no quarto através de fissuras no telhado, Dona Giselda, mulher de Agamenon sentiu as primeiras dores do parto.

Agamenon, num pulo só saltou da cama, vestiu-se apressadamente e correu para o jirau onde guardava os arreios. Atrelou o cavalo à carroça um tanto usada e sem bancos, e foi em direção à casa de Mãe Crisalda, parteira e benzedeira de grandes habilidades naquelas bandas do sertão. Foi ela quem ajudou sua mãe, Nhá Marina parir seus cinco irmãos. Ele e os outros seis mais velhos nasceram na fazenda de “seu” Quincas, filhos de Geremias, primeiro marido de sua mãe, morto por uma chifrada de boi.

-Mãe Crisalda...Mãe Crisalda....Mãe Crisalda, gritava Agamenon, enquanto batia fortemente na porta.

-Quem é?

-Sou eu, Agamenon, Giselda está com dor de parto e eu vim buscar a senhora pra ajudar o nenê nascer.

Mãe Crisalda, rezingando adoidada e portando um candeeiro a querosene, cujo pavio de algodão gasto pelo uso, mal iluminava seu rosto, aproximou-se da porta, abriu-a e mandou que Agamenon entrasse e aguardasse enquanto ia pegar “mezinha”, arruda e alguns apetrechos de que iria precisar.

Ainda zangada por ter sido acordada àquela hora da noite, mas consciente de sua função perguntou para Agamenon se em sua casa tinha álcool, cachaça e sal grosso.

- Não, mas na volta eu pego na venda de Maninha.

Subiu na carroça ao lado de Agamenon, e se acomodou sobre o estrado com as pernas penduradas.

Em disparada e com pressa de chegar, só as patas do cavalo e a relha da carroça deixavam suas marcas na estrada empoeirada do chão bruto e seco.

- Esqueci de pegar o relicário, disse mãe Giselda aborrecida.

-Não faz mal, vamos sem ele. A muié não agüenta mais. Acho que quando chegar, o menino já nasceu. Respondeu Agamenon nervoso.

Mal deu tempo de descerem da carroça, e mãe Giselda de posse das coisas que trazia dirigiu-se ao quarto em que estava à parturiente.

-Preciso de ajuda. Chamem a Marilda, pediu mãe Giselda.

Marilda era a irmã mais velha de Agamenon, dentre as mulheres.

Tinha experiência, apesar de não ter filhos. O único havia nascido morto, após um parto complicado que a impediu de conceber novamente.

Com as folhas de arruda embebidas em álcool, vinagre e sal, mãe Giselda esborrifou a barriga da parturiente que se torcia de dores.

- Não quero ninguém no quarto, somente eu e Marilda, disse esbravejando para que todos se retirassem.

Mãe Giselda dizia algumas palavras inaudíveis, que só ela entendia enquanto lançava “mesinha” e defumava o quarto espalhando a fragrância pelo ar.

Trinta minutos depois berrava um meninão amparado pelas mãos ágeis e delicadas da parteira.

Cortaram o cordão umbilical e deram-lhe o nome de Agapito.

Nascia o primeiro tataraneto de Nhá Marina que não teve a sorte de conhece-lo.

O Retrato do Sertão - 2

O sitio Poços dos Anjos amanheceu triste e desolado naquela manhã de sol quente. Na noite anterior toda vizinhança já sabia da morte de Nhá Marina.

-Morreu que nem um sabiá, disse Maninha com o filho caçula no colo.

-Que Deus guarde sua alma, repetiu Sá Lorena com um ramo de flores silvestres embebido com ervas medicinais que portava à mão.

Resmoneios de benzedeiras em volta da cama- em sua homenagem - eram ouvidos a distancia num coro uníssono e uniforme que se fazia acompanhar por todos que ali estavam. Até Sá Lorena, macumbeira de mão-cheia se fez presente, para desagrado dos filhos por quem não tinha nenhuma simpatia. Acantáceas em formato de feixes foram colocadas ao lado do defunto para - segundo a lenda da região – evitar que as bromas destruíssem o pano da rede caprichosamente tecido com bordados feitos à mão e alusivos às coisas do sertão. O Pároco mais próximo era da cidade de Angico, muito distante do local, por isso chamaram Mãe Crisalda, benzedeira gorda e baixinha que morava nas redondezas. A ela coube a incumbência de consagrar o corpo e prepara-lo para entregar nas mãos de Deus. Ramos de folhagens de diversas espécies e molhados com água e sal eram passados de mão em mão para que todos abençoassem a moribunda. Não se ouviam choro, nem lástimas, apenas rezas. Ninguém chorava por defunto naquelas bandas acostumados que estavam com o sofrimento em vida, já que a morte para eles é melhor que viver. A morte, é o descanso eterno do nordestino que passou a existência sofrendo os agouros da seca e da fome.

Terminada a cerimônia do velório, o marido e três de seus filhos-os mais velhos-dois em cada extremidade da rede seguiram com o féretro até o cemitério mais próximo. Cemitério era o que não faltava naquele sertão. Todo agricultor tinha um ao lado da casa onde enterravam seus entes queridos. Mas, por entrave de família – diziam alguns que a pedido dela- resolveram enterrar Nhá Marina no cemitério de “seu” Quincas, patrão do seu primeiro marido e padrinho de Agamenon, por quem nutriam grande amizade e respeito

Assim foi feito. Partiu Nhá Marina sem ver o nascimento dos tataranetos, deixando uma lacuna na família e um vazio nas noites de luar, quando no alpendre da casinha de taipas, depois das baforadas no cachimbo de barro, reuniam-se para ouvir estórias de lobisomem e aventuras de Lampião que ela bem conheceu.

Julho, 13/09

O Retrato do Sertão - 1

Apoiada numa bengala de pau com solado de couro de boi para não escorregar, ela se dirigiu ao alpendre da casa construída de taipas, e sob a janela sentou-se num banquinho de madeira de três pés feito por um dos filhos. De lá observava e comandava todo o movimento do roçado. Com mãos tremulas pegou o cachimbo de barro, colocou o pouco do tabaco que ainda restava e deu duas baforadas esfumaçadas que se esvaíram rapidamente no ar,e cuspiu fortemente sobre o piso do chão empedrado. Sentiu-se, naquele momento aliviada dos percalços da vida. Prendiam lhes os cabelos brancos e escassos que ainda lhes restavam, uma espécie de atavio enfeado, recordação dos tempos de mocinha.

Nhá Marina, como todos a conheciam tinha 102 anos de idade. Nasceu em 1908, nos arredores do município de Angico, sertão de Alagoas. Viúva por duas vezes, teve doze filhos, dezoito netos e quatorze bisnetos. Tataranetos estavam por vir, filhos de Agamenon e Agadir, os mais velhos.

Ao anoitecer, sob a luz das estrelas e da lua quando era verão bruto no sertão, rodeada pelos filhos, netos e bisnetos gostava de contar a saga de Lampião que o conheceu quando tinha doze anos de idade.

Naquele pedacinho de terra, cizânia do sertão bravio esquecido de todos e longe da civilização, ela criou os filhos com ajuda do segundo marido, Zé da Vila, cabra macho por quem se apaixonou quando o conheceu numa festa de São João. O primeiro marido, pai de sete dos seus doze filhos, havia morrido por uma chifrada do boi “cabreiro”, um dos zebus mais ferozes do “seu” Quincas”, fazendeiro para quem trabalhava.

-Bás tarde Nhá Marina, como vai? Disse Zequinha da Venda.

Ergueu os olhos assustada, e num ímpeto de curiosidade, indagou:

- Quem é você?

- Sou o Zé, filho de Maninha...Zequinha da Venda. Vim trazer umas coisinhas que a mãe mandou pra Senhora.

-Senta aqui, meu fio. Como vai sua mãe?

- Ela lhe mandou lembranças e recomendou-lhe repouso.

- Pois diga pra sua mãe que é ela quem precisa de descanso.

- Eu to muito bem, de manhã já dei mio pras galinhas, pras cabras, rocei, cuidei do terreiro, da chafurda, fiz o armoço prus fios, e agora tô baforando meu cachimbo.

Diante disso, Zé da Venda, entregou a encomenda e se mandou, mais ligeiro do que chegou.

Nhá Marina contava que quando tinha doze anos, Lampião e seu bando chegavam de repente nas redondezas e aliciavam jovens como ela a irem ao acampamento e participar das rodilhas que soe acontecer após investidas vitoriosas.

Certo dia, já tardezinha o cabra de Lampião de nome Corisco, veio à sua casa e com permissão do pai, levou-a juntamente com outras jovens da redondeza, todas de olhos vendados para não conhecerem o lugar aonde seriam levadas.

Elas se divertiram tanto com os “cabras” que tanto chalacearam, que no dia seguinte não queriam ir embora. Como o Capitão Virgulino era homem de palavra, ordenou seus cabras - cada uma montada na garupa do cavalo – a entrega-las sãs e salvas com os seus agradecimentos. Cada jovem recebeu um mimo do Capitão. O de Nhá Marinas era uma tiara confeccionada em chifre de boi ornado com pequenas estrelas de prata.