Saturday, May 12, 2007

Minha Musa

Ela era minha vizinha. Morava ao lado da minha casa. A cidade pequena facilitava que todos os moradores se conhecessem.

Não havia mais de que cinco mil habitantes. Todos sabiam da vida de todos. Até do padre. Como ele se vestia, com quem falava, como dormia, com quem dormia...Eram incríveis as bisbilhotices maledicentes, principalmente daqueles que tinham desprezo por ele. Mas, ele era um santo homem. Sua conduta ilibada dava-lhe respaldo de sobra por seu caráter irrepreensível. Procurava ser amigo de todos e a todos os perdoava.

Rute, minha vizinha era uma garota, cerca de 17 anos, morena de olhos azuis e irrequietos e cabelos cacheados pendentes sobre os ombros lisos e torneados. Era filha do prefeito. Era a coisa mais linda e delicada que havia na cidade. Todos os moleques queriam namorá-la, mas ela não dava colher de chá pra ninguém. Era inteligente, estudiosa e amiga de minha irmã.

Certo dia ao passar em frente da casa dela eu a vi, lendo um livro. Estava sentada numa cadeira de balanço à sombra de um umbuzeiro carregado de frutos, com as pernas cruzadas, tendo no colo um ursinho de pelúcia branco que o acariciava com delicadeza que dava inveja. No instante em que eu me aproximava, um vento forte vindo do leste tirou-lhe algumas folhas de papeis que as retinha entre as mãos delicadas e juvenis. Incontinente, apressei-me a apanhá-las; e o fiz com tanto apreço, que ao abaixar-me minha mão tocou suavemente no seu corpo. Ela olhou-me ruborizada, sorriu e perguntou-me:

– Você é o Miguel, irmão de Marilda? Obrigado pela gentileza, disse-me com um olhar sorrateiro. Como você está?

– Estou bem... Respondi-lhe um tanto atônito.

– Muito prazer. Somos vizinhos, não?

– Sim, já há bastante tempo. E você, como está? Perguntei-lhe, mais confiante.

– Vou vivendo. Sem coisa nenhuma para fazer, leio bastante para passar o dia. Respondeu-me com timidez, o olho fitando o chão e o coração palpitante, entre o medo do pai e a emoção de falar comigo, apesar de já ter percebido que, de uns tempos para cá, seu interesse em falar comigo se intensificava. Senti naquele rosto a expressão de alegria que teve em encontrar-me. Conversamos por algum momento, desfrutando a sombra daquele umbuzeiro que me deu a oportunidade de encontrar a garota que mais tarde se tornaria minha mulher.

Saturday, May 05, 2007

Pronunciamento

Amados irmãos

O assunto é corriqueiro, mesmo porque lemos nos jornais, ouvimos pelas rádios e tvs diariamente, ou através de pessoas, dos amigos...Enfim, ouvimos de vários setores da sociedade que a corrupção, o despotismo e os interesses pessoais adotados pelos políticos, são praticas comuns e normais exercitadas pelos poderes constituídos, mas que deveriam servir de coluna sustentável da Republica. Mesmo assim, independente das denúncias que a imprensa faz, do anseio que a sociedade tem para pôr fim a tais práticas anômalas, a poeira não baixou e o odor fétido continua sem que nenhuma autoridade quer do executivo ou de outros poderes, faça qualquer coisa que seja capaz de impedir a ramificação e reprimir definitivamente este asco que enoja o povo brasileiro e fere sua dignidade. Por mais que a imprensa denuncie os crimes praticados pelas autoridades constituídas dos poderes executivo, legislativo e judiciário, mais a voracidade de fazê-lo se espalha e se multiplica transformando-se num crime vulgar, peça fundamental e essencial ao currículo de crápulas rapineiros do erário publico, às vezes com aval de Ministros de Tribunais que, através de acórdãos esdrúxulos e sentenças negociáveis incentivam à prática da ilegalidade, a exemplo da lista dos políticos investigados e ocupantes de cargos públicos que tinham processos em andamento por desvio de valores éticos ou morais com a sociedade brasileira.

O crime se prolifera pelo continente atingindo regiões distantes e alcançando órgãos até então isentos como o poder eclesiástico, imune de qualquer manifestação pagã, tido como o fiel defensor da ética, da moral e dos bons costumes.

Não saberei dizer para onde caminha a sociedade brasileira, para onde iremos sem a moral e a ética que nos conduz. Somos navegantes sem rumo seguindo os desígnios que outros nos impõem. Não temos o caminho certo que poderá nos dar a sustentação de seguir a verdade, porque não temos a capacidade de lutar pelos nossos direitos, enquanto ficamos aqui ouvindo nhem-nhem-nhem e as coisas acontecendo lá fora, sem que tenhamos capacidade de nos defender. ...Imagine defender os outros! Nem pensar!... Que sociedade é esta? Miremo-nos nos exemplos de Tiradentes. Caxias, Ozório, Bonifácio, Hermes da Fonseca, Patrocínio e tantos outros próceres da Republica que nos deram suas vidas para que pudessem-nos tornar independentes e não submissos. O que fazemos hoje? Ajoelhamo-nos perante os políticos que nos dão a mão. Basta que nos chame pelo nome e já nos subordinamos a ele. O poder da maçonaria meus irmão, é maior do que imaginamos. Ser Maçom não é como se pertencesse a uma sociedade qualquer, sem desmerecê-las, porquanto, julgo melhores preparadas para exercer o papel de defensor dos necessitados do que a Maçonaria, que no meu entender nada faz, nem pelos próprios irmãos, nem pelos que dela necessitam. O que se nota hoje em dia, e me faz crer verdadeiro, é que a maçonaria tornou-se uma sociedade heráldica, outorgando honrarias e títulos a quem melhor lhe interessar. Não é esse o caminho que vislumbro para a entidade que me acolheu trinta anos atrás, quando procurava ser um diferenciado na sociedade. Desconhecemos as nossas força, nada saberemos do nosso potencial se não nos unirmos e lutarmos pelos nossos direitos. Nada nos impede, desde que tenhamos coragem e vontade para prosseguir o nosso intento. Não sejamos omissos, não nos acomodemos a esperar as coisas acontecerem. Vamos dar o exemplo e mostrar a todos que somos capazes de mudar uma cadeira de lugar, desde que ela esteja em desarmonia com as demais, mesmo que seja o nosso irmão que necessite mudar.

Lutemos pela Família e pela Pátria, libertando-as dos grilhões dos corruptos depravados que insistem acorrentá-las e subjugá-las. .

Aos nossos irmãos ancestrais que nos deram o sangue de suas vidas, pedimos o perdão pelas nossas omissões de agora.

J.Miranda Filho

M. ’.I. ’. ABRIL 2004.

Wednesday, May 02, 2007

Fim Do Sonho

Mal o dia amanheceu e ele já estava de pé. Estava frio e escuro. Levantou-se e foi direto à cozinha fazer o café. O almoço já estava feito desde ontem à noite, acondicionado na marmita e colocado dentro do forno para manter a temperatura. A mulher e os filhos continuaram dormindo.

Pegou a marmita, o guarda-chuva e os bilhetes da condução e partiu para mais um dia de trabalho. Era mestre de obras na construção de um prédio de 40 andares, com todos os requintes de luxo, piscina quente e fria, adulta e infantil, churrasqueira, solarium, sala de ginástica, biblioteca, discoteca, salão de festas e de jogos, sauna, e um tanto de outras coisas mais, que mal conhecia ou já ouvira falar. Também, para esse tipo de edifício, um apartamento por andar, com 400 metros quadrados de área, tinha que ter mesmo todas essas parafernálias que só os abastados podem possuir.-Pensava ele.

Andou cerca de 500 metros para pegar o ônibus que o levaria até a obra. De sua casa até o trabalho gastava uma hora e trinta minutos. De segunda a sexta ele fazia esse percurso duas vezes ao dia. Aos sábados trabalhava de pedreiro fazendo bico para os vizinhos. Afinal, sua fama de bom profissional já chegara à redondeza.

Aquele dia de chuva e frio transcorria normalmente como todos os outros. A segurança checada, precauções advertidas...Estava tudo normal, não fosse a triste fatalidade daquela tragédia que abalou a todos os operários do canteiro de obras, e particularmente o encarregado, seu chefe e amigo.

Às 10 horas e 30 minutos, um andaime carregado de tijolos e cimento despencou do 12º andar, atingindo em cheio a cabeça de Severino, um ajudante “meia-cuié” na gíria da construção, que morava no próprio local, e no momento do acidente estava preparando a massa para o assentamento de pisos no apartamento que serviria de amostra aos futuros compradores.

Todos correram na tentativa de salvar o humilde operário que havia deixado a mulher e dois filhos no sertão do Piauí para tentar vida nova em São Paulo, fugindo da seca e da fome. Lá não tinha emprego e nem perspectiva de melhoria de vida. frente de trabalho aberta pelo governo para a construção de açudes não fora suficiente para empregar todo mundo. Tinha gente de mais e emprego de menos. O jeito foi arrumar as malas, pegar o ônibus e partir em busca de nova vida. Afinal ouvira falar que em São Paulo se ganhava muito dinheiro e tinha trabalho pra todo mundo.

Lá ficaram, a esposa e os dois filhos, menores de idade: William e Wellington, de dois e três anos, respectivamente.

Cícero, amigo e conterrâneo do Piauí e colega de acampamento não continha as lágrimas que lhe caiam sobre o rosto transtornado e molhado de suor.

- Que coisa horrível, meu Deus,que tragédia, repetia a todo instante, indo e vindo de um lado a outro do local onde estava o corpo.

-Como o Severino não viu o andaime vindo em sua direção! – Será que ele não ouviu o barulho dos cabos deslizando sobre a torre de madeira? Questionava-se aterrorizado!

– Meu Deus, meu Deus, exclamava a todo instante. Mas nada pode fazer.

O resgate foi acionado e os para-médicos, salva-vidas do corpo de bombeiros, nada puderam fazer pelo coitado que jazia moribundo sobre o chão frio e úmido, entre destroços de construção.

Às 20 horas seu corpo foi levado para o Instituto Médico Legal, para autopsia.

Cícero, a pedido do mestre de obras acompanhou tudo e incumbiu-se de transmitir à família a triste tragédia. Imaginava um modo de como a sua mulher sem lhe causar traumas ou maiores sentimentos. Não tinha como fazer...Na casa de Severino não tinha telefone, aliás na vila inteira ninguém tinha. O jeito foi mesmo ligar para o posto telefônico local e pedir para alguém ir até a casa de Dona Zuleide, avisá-la para estar ás 21 horas na telefônica, que Severino, seu esposo, queria falar com ela.

Às 21 horas em ponto Cícero telefonou e disse que Severino não pudera vir e pediu-lhe que desse o recado. Mas, Zuleide, desconfiada não acreditou e começou a chorar questionando Cícero sobre o que havia acontecido, já que na noite passada ela tivera um pesadelo em que via inerte sobre o chão o corpo do marido.

Cícero não se conteve, como também, não pôde esconder o acidente. Em prantos, contou-lhe e disse que o corpo de Severino estava sendo enviado para ser sepultado. Em seguida desligou o telefone.

À noite, na solidão do acampamento, sem a presença do companheiro e amigo, Cícero imagina-se voltando para sua terra natal com dinheiro no bolso, o suficiente para comprar algumas rezes e uma pequena roça onde pudesse plantar e colher alguns grãos, sustentar a família e viver feliz. Sonho que Severino também sonhou sem tempo de realizar. Foi o fim de tudo, de João, José ou Severino, qualquer deles, cidadãos brasileiros.


J.Miranda Filho

Janeiro 2007.

Uma Tarde Em Madri

Carlos amarelou! Ficou pasmo! Não sabia o que fazer. O cara, cheirando a álcool, que ninguém viu de onde saíra, postou-se à sua frente e com o dedo em riste apontado para o nariz disse: - Foi você! Vai pagar por isso, agora! Por alguns instantes Carlos tremeu. Não sabia o que responder. Depois de alguns instantes se encorajou e um forte sentimento de raiva dominou-lhe inteiramente. Queria partir para a agressão e revidar com tapas na cara a agressão que acabara de sofrer. Mas, impedimo-lo de o fazer, seus amigos, sentados à mesa de um restaurante, degustávamos um vinho enquanto saboreávamos um delicioso jamón. Nós presenciamos tudo, e, tudo ouvimos; os gritos, desaforos e a agressão verbal proferida em tom acintoso. O moço estava transtornado, furioso e demasiadamente embriagado. Sobre a mesa estava um panfleto impresso em duas cores e letras garrafais, anunciando o espetáculo de tourada que aconteceria naquela tarde em Madri. Aquele dia seria a consagração do grande toureiro Marcelo Pancho, ganhador do famosíssimo prêmio Dom Ramon, ano passado. Sua fama já havia chegado fora da Espanha. Esta seria a terceira vez que ele disputaria o campeonato espanhol de tourada. A cidade estava em festa. Os bares e confeitarias estavam lotados de gente que viera dos arredores de Madri e até as outras cidades. Enquanto aguardavam o início do espetáculo, aproveitavam o tempo disponível para um bate papo e uma taça ou outra de conhaque - Carlos I ou Cardenal Mendonza. O cidadão que ofendera Carlos já estava pra lá de Bagdá. Já não tinha domínio de si. Não tinha noção do que falava nem do que fazia. Seu olhar amarelado denunciava a quantidade de álcool que havia ingerido.

Ao atirar-se contra Carlos, cambaleou e esparramou-se sobre a mesa onde estávamos sentados, quebrando todos os copos e alguns pratos. O garçom correu imediatamente e o conteve, com auxílio de alguns presentes. A fúria demoníaca daquele biriteiro, que minutos depois soubemos tratar-se de um primo do toureiro Marcelo Pancho, nos amedrontou e nos fez temer por alguns instantes a infusão política separatista. Mas, felizmente, ele havia confundido Carlos com um cidadão basco, que dias antes, numa elegante confeitaria em Mahadaonda tinha agredido Marcelo Pancho, por ter dirigido gracejos a sua mulher.

Contidos os ânimos e desfeito o engano sob o efeito enérgico da polícia madrilena, que levou o cidadão à delegacia para esclarecimentos, prosseguimos com o bate-papo naquela tarde quente de Madri.

Madri, Outubro de 2006

Tarde Demais

Era noite. Chovia muito. Não havia ninguém na rua. Por um momento ele contemplou as luzes resplandecentes da cidade através dos vidros da janela do quarto. A fumaça do cigarro se esvaiu no espaço deixando o ar irrespirável e escurecido. De repente, na amargura do desalento sentiu um desejo ardente de abraçar alguém, sentimento que não existia em seu coração já há bastante tempo. Mas, a quem abraçar? Não havia ninguém por perto. Como achar alguém àquela hora e ainda mais numa noite escura e tenebrosa sufocada pela tempestade que se abateu sobre a cidade. A solução para satisfazer seus instintos do momento veio através da vontade de abraçar sua própria sombra projetada na parede através das réstias da luz da vela acesa sobre a mesa, dentro de um pires, de modo a colher os detritos consumidos pela voracidade do fogo. A luz se apagara devido ao nocaute no sistema elétrico da cidade, causando pânico à população.

Ridículo abraçar-me, pensava! Mas a vontade de abraçar alguém era tanto que ao lançar-se sobre sua própria sombra, esta se moveu para um lado como se tivesse sido empurrada abruptamente por alguém. Ele ainda ouviu e sentiu o choque nitidamente. Por um instante, uma sensação estranha tomou conta do seu corpo, causando-lhe o temor de que algo sobrenatural estava acontecendo naquele lugar. Percebia alguma coisa anormal. Sentia no espaço a sensação estranha de algo desconhecido. Nunca acreditou em assombração....nunca viu e nem ouviu nada que fosse capaz de tirar-lhe o sono nas noites de tempestades. Achava pura imaginação o que sentia e ouvia. Ele ouviu a rugido do vento bradando nas vidraças da janela forçando-a e querendo penetrar naquele humilde quarto, aonde sobre a mesa existiam apenas uma vela acesa, um cigarro no cinzeiro e um copo de vinho, ainda pela metade. Não conseguia entender o mistério daquele desejo de abraçar alguém. Tentou novamente abraçar-se. Mais uma vez sua sombra o rejeitou, agora por uma movimentação brusca e inexplicável. Pela terceira vez também não conseguiu formalizar seu intento de abraçar-se. Entretanto, naquele momento a luz da vela se apagou misteriosamente, seguindo-se uma forte uivada de vento vindo do lado de fora da casa. Não acreditava em coisas sobrenaturais. Mas como duvidar disso se as janelas, as portas, tudo estava trancado e bem vedados... e como a luz se apagou? Não havia como o vento penetrar naquele recinto. Alguns instantes depois, como num toque de mágica a vela se acendeu novamente, trazendo-lhe o medo e o pânico, uma vez que ele pôde ver sua imagem movimentando-se na parede, indo de um lado a outro, enquanto ele permanecia ali parado de pé, estático ao lado da porta. Alguma coisa estava acontecendo. Foi verificar.

Dirigiu-se à porta para abri-la e andar um pouco à toa pela noite escura, mesmo sob a tempestade que encobria a cidade. Ele queria espairecer-se, esquecer de que existia vida para ele. Queria excluir de sua vida o nada, como se o nada não lhe representasse nada que não sentiu. Mas, o nada é tudo quando se tem abundancia de tristeza, de sofrimento e de dor. Nesta hora é que o nada passa a valer tudo e a gente prefere tê-lo. Ele queria fugir de si mesmo. Abraçar alguém, era a única coisa que desejava naquela hora. Queria esquecer o passado, já que seu passado foi trágico e cruel. Agora tinha medo do presente que jamais viveu.

Quando tocou na fechadura e girou-a para o lado esquerdo, a sombra postou-se à sua frente, e ai ele pôde perceber a realidade. Ouviu sua própria voz dizer-lhe suavemente: “Repudio o seu abraço e nem quero sua piedade. Você passou todos os anos da vida fugindo de si mesmo, da família, dos amigos. Isolou-se no mundo e refugiou-se na solidão. Esqueceu de viver e a todos olvidou e desprezou.” Naquele momento ele entendeu a razão de toda a existência e a dimensão da vida. Realmente já fazia bastante tempo que não sabia o que era um abraço, um sorriso, um ombro amigo, uma alegria ou um sentimento. Não sabia que o amor e o sorriso eram capazes de transformar o mundo. De tanto fugir das pessoas, isolar-se e afastar-se da sociedade, a solidão afetou seus neurônios e suas faculdades mentais, deixando-lhe profundas seqüelas e sérias conseqüências pelo gesto tresloucado e ignóbil que praticou, por ignorância ou crueldade.

No dia seguinte pela manhã seu corpo foi encontrado pelos vizinhos, ainda agarrado à maçaneta da porta, fulminado por um violento choque elétrico que o derrubou, juntamente com a porta, impedindo-o de abri-la e sair pela noite afora. Ele pensou em reverter aquele ódio insano que dominou sua alma por toda a vida, em momentos de alegria. Queria livrar-se da dor angustiante que sentia no peito, da falta de amor ao próximo, da indiferença e da ingratidão, da tristeza que carregava dentro de si e da solidão que vivia. Queria dar o pouco de amor que ainda restava em seu coração petrificado e empardecido.

Não houve tempo!. Era tarde demais!.


J.Miranda Filho

Dezembro 2006.

Opção De Vida

Se me fosse dada à oportunidade de uma cirurgia plástica eu optava pela minha alma. Ela necessita mais do que meu corpo arqueado, carcomido e envelhecido, para transformar-se numa alma nova com aspecto ativo e empreendedor para novas aventuras, novas vivências e me deixar mais jovem com novas idéias e novos pensamentos, sem, no entanto, esquecer-me do passado: O que fiz de bom e valioso. Contudo, tudo isso não teria valor algum se me esquecesse das vitórias, das lutas, das pessoas que amo...Devemos, porem, esquecer do ódio, dos inimigos, da mágoa e do sentimento de que sofremos.

Mais dói o perdão para a pessoa que recebe, do que o gesto de perdoar de quem o concede. As mágoas recolhidas se evidenciam quando nos defrontamos com a pessoa que nos ofendeu e olharmos olho no olho. Não adianta disfarçar. As mágoas abrocham nos nossos olhos, no sorriso, no semblante de nossa face e no modo de falar. Por mais que não desejemos, ela se afigura como um carrasco, como se fosse dirimir e perdoar todos os ressentimentos e ódio.

Abramos a gaveta do nosso coração e joguemos para fora todo o sentimento de raiva. Afinal, não precisamos da ajuda de terceiros, pois não somos egoístas de querer tudo para nós. Dividamos com os outros precisam mais do que nós.

A marca das feridas do sofrimento, não devem mais existir em nosso coração. Carreguemos sempre em nossa memória a lembrança do passado que vivenciamos. Todas os dias, todas as noites e todo o momento são para viver. Hoje sonhamos com a realidade. Vivamos a vida do bom viver.

Ame-o Ou Deixe-o

- Bom dia! Disse Doutor Afonso.

- Bom dia, respondeu o cidadão desconfiado.

- Tudo bem?

- Tudo bem, e você?

- Também, estou bem!

- O que fazes aqui?

- Por acaso, tu me conheces?

Doutor Afonso tinha a nítida impressão que conhecia aquele cidadão. Já o tinha visto antes. Não tinha qualquer dúvida.

-Conheço sim, e queria saber o que fazes aqui.

- Do que estás falando? Nunca o vi antes em minha vida!

-Que é isso colega! Não te lembras quando nos encontramos em Manaus, no ano passado, no II Simpósio sobre Violência, patrocinado pela Ordem dos Advogados do Brasil? Replicou Doutor Afonso, com veemência.

Certamente ele se lembrava, mas como estava acompanhado de Juristas e Professores Universitários, que vieram a São Luiz proferir palestras na Universidade local sobre a dissensão da organização criminal entranhada nos poderes da Republica, fez-se de rogado, e desprezou-o. Deu um deixa pra lá. Deu de ombros, meia volta e seguiu seu caminho. Não seria um simples episodio deste que iria alterar sua personalidade, seu comportamento e sua auto-estima. Pareceu-lhe a pervertida demasia de alguém se julgar importante, quando está no meio deles! Participou da palestra sem fixar seu olhar, em momento algum, àquele que antes lhe desprezara.A palestra prosseguiu com a participação de vários oradores.

- “É o eterno temor de se morar numa cidade grande e violenta, dominada pelo medo! Disse um dos palestrantes, dando continuidade a conferencia”.

- “Vive-se o dia-a-dia sob o estresse do terror. Os crimes acontecem continuadamente, sem que as autoridades responsáveis pela segurança da população encontrem o pretexto definitivo de combatê-los”, disse o outro ““.

- Não tem a menor relevância para a sociedade, se o delito foi praticado por menores de idade ou por profissionais formados na escola da criminalidade, disse o terceiro palestrante.

Neste momento, alguém da platéia solicita uma questão de ordem e a presidência da mesa concede-lhe a palavra.

-A policia prende e a justiça solta. É o jogo do empurra-empurra! Enquanto isso, a população se recolhe e se aprisiona em suas casas, vítimas do próprio medo. Replicou um advogado de Goiás, sentado ao meu lado, um tanto tremulo e nervoso.

-Vejo-me prisioneiro sem ter cometido qualquer crime, apenas por ser honesto e acreditar nos políticos que praticam os delitos mais hediondos e por eles nunca são punidos.Exemplos não nos faltam: Desde os mais humildes aos mais graduados membros dos poderes da Republica, disse com ênfase na voz.

-Há sessenta anos atrás era um jovem alegre e cheio de vida. Saia às ruas para diverti-me nas baladas das noites goianensses, sem qualquer receio de voltar pra casa. Não havia nada do quê temer. Não tinha medo de coisa alguma, mormente, dessas barbáries que soem acontecer nos dias hoje, que àquela época não existiam. Havia apenas batedores de carteira, pés-de-chinelo, nos trens de subúrbios, nos ônibus e nas ruas, que sorrateira e habilmente, surrupiavam as inânias do bolso dos passageiros e transeuntes distraídos. A vida era bela...Hoje, pagamos o preço do progresso. De simples ralés batedores de carteira, a intelectuais do crime, juristas, desembargadores, policiais, políticos e ministros, todos criminosos, alguns com diplomas de universidades oficializadas, outros, diplomados nas “universidades prisionais” superlotados do país. Se o Estado não tem a estrutura e nem as mínimas condições de socializar o preso, recuperá-lo e reintegrá-lo novamente à sociedade, é por que não deseja tê-las. Talvez tenha suficientes razões para não fazê-las. Afinal, se assim o fizesse, estaria extinguindo a mais sublime e legitima oportunidade, de não conseguir jamais amealhar alguns reais insecáveis em suas pretensões criminosas, a exemplo de falsas sentenças expedidas a preço de ouro, por quem tem a obrigação ética, moral e profissional de nos proteger. As prisões se transformaram em verdadeiras faculdades do crime. Lá, quando recolhidos se especializam em seqüestros, assaltos e outros delitos.Nesta altura do seminário o colega havia dominado a platéia. Todos o aplaudiram de pé.

-Onde estou? Em que país vivo? Não sei aonde chegar! Ignoro o destino dessa gente ordeira e trabalhadora que paga seus impostos, e vive reclusa de si mesma. Se as autoridades constituídas, àquelas em que a sanha da avidez não as dominou ainda, a quem competem combater a criminalidade não adotarem serias providências, o país vai à derrocada. Sucumbem-se todos os poderes, e os valores sociais e morais da nação serão expurgados por aqueles que não os tem. Se falta a competência e a honestidade aos governantes para administrar o país, melhor seria lavar a lama que o assola, devolvê-lo aos portugueses pedindo-lhes desculpas pela falsa moral administrativa, e dizer-lhes que assimilaram muito bem o exemplo recebido no passado, no período colonizador, e, que já tiraram com bastante avidez o quinhão que lhes era devido.

Foi aplaudidíssimo!

SCSul, 10/02/2007

Noite Infeliz

“Eu bebo para as outras pessoas ficarem mais interessantes”
George Jean Narthan

Numa noite de dezembro, véspera do natal, do nascimento de Cristo, nosso Pai e Protetor, ele chegou em casa bêbado e abodegado pelas tantas quedas que levara. Seus olhos estavam congestionados e amarelados pela enorme quantidade de bebida alcoólica que ingerira com amigos em algum canto da cidade. Faltavam poucos minutos para a meia-noite.

Nada teria mudado sua vida, não fosse o casamento feito às pressas que a justiça lhe obrigou contrair para reparar o crime de sedução que havia cometido. Jamais amou aquela mulher. Queria continuar vivendo como sempre vivera: solteiro e feliz, sem qualquer compromisso, notadamente com aquela mulher que lhe causou todos os dissabores da vida. Não havia razão para continuar morando no mesmo teto. Por isso bebia e buscava no álcool a solução dos seus problemas. Sempre foi covarde! Não tinha coragem sequer de pedir o divórcio, por que a pensão que ela exigia ultrapassava a metade de seu salário, e ainda a partilha dos bens, com o qual discordava. Estava engasgalhado. Não tinha como sair desta fria. Curtia as mágoas numa mesa de bar junto com outros companheiros partidários do mesmo infortúnio.

Em torno da mesa estavam sua mulher, seus pais, os pais dela, os cunhados e vizinhos.

Naquela noite de esplendor e alegria, de amor e sentimento, de ausência e presença e de farta comida sobre a mesa, nada faltava, exceto ele, um pusilânime. De repente, cambaleante e emborrachado, ele chegou, não para compartilhar a felicidade da família e de todos os presentes, mas para trazer a discórdia, a desarmonia e o ódio. Ninguém imaginava cena tão triste numa noite de natal. Por não se agüentar de pé, esborrachou-se sobre a mesa e vomitou todo o conteúdo armazenado no estomago. Um tombo inefável o fez cair ao solo que o levou ao sono profundo, devido à coma alcoólica, em meio à sujeira que expelira. Assim permaneceu, sem que ninguém se compadecesse do seu estado físico e moral. Lá ficou! A mulher e os parentes, não contendo as lágrimas, a vergonha, a decepção e o constrangimento, abandonaram o lar, deixando-o à mercê da própria sorte.

No amanhecer do dia seguinte com a cabeça estalejante, levantou-se do meio da estrumeira, e não vendo ninguém em casa, chorou de tristeza e sentiu vergonha pelo que havia causado. Finalmente, criou coragem e tomou a decisão certa. Separou-se.

J.Miranda Filho

12/06

Estranha Sensação

Hoje, levantei-me sonolento e de ressaca. Passei o dia cansado e triste! Dormi a tarde inteira. Agora são exatamente vinte horas e cinco minutos. Estou sentado à frente do computador e logo começo a escrever alguma coisa. Não sei, porém, o que será, não tenho nenhuma idéia no momento. Se tomar uma dose de uísque e uma cerveja, aí poderá surgir alguma inspiração, algo em torno de uma imaginação, ou invenção. Como é difícil escrever sem um conceito definido, algum tema, uma idéia... Escrever à toa sem inspiração ou emoção é a mesma coisa que falar em vão. É a sensação que sinto agora. Nenhuma inspiração, nada! Escrevo para burlar o tempo e não desperdiçá-lo. Não sei aonde chegar, o que alcançar, nem o que será. Escrevo, só isso. Percebo, agora uma coisa estranha no meu corpo. Sinto minha alma aspirar e desejar algo, só que não identifico sua necessidade. Ainda não estou preparado espiritualmente para coisas sobrenaturais. Sinto-as! Só isso. É um desejo ingênuo, uma sensação estranha de fazer, mas, não consigo trazê-la à tona e transportá-la à realidade, e assim disseminar seus sentimentos. Sinto vontade de ver a luz da lua, acabar com a tristeza, sentar-me à sombra das estrelas, impedir a luz do sol brilhar no horizonte à beira-mar, para ser sempre noite, difundir a beleza da floresta aos incautos devastadores, divulgar o canto dos pássaros àqueles que não ouvem a melodia da vida, fazer ecoar a todos os cantos o som das ondas do mar sobre as areias alvas da praia e enxugar com a mortalha de Cristo as lágrimas amanhecidas do orvalho da noite sobre as folhas verdes do pântano. Sinto vontade de esgoelar àqueles ímpios e avarentos escravos da ganância que, com certeza, irão sentir no futuro a fúria da natureza, por destruí-la e modificá-la, transformando-a no cartão postal de seus instintos perversos e avarentos lucros cessantes. Não consigo, porém, imaginar que alguém em sã consciência pratique tamanha insensatez. Mas, a avidez e a destreza corrompida de quem pode impedir, sobrepõe à manutenção da vida. Destruir a natureza não é comigo! Não tenho predestinação para isso, muito menos, sensibilidade de fazê-lo. Ao contrário, quero agradecê-la pela amplidão dos benefícios que nos proporciona para continuarmos vivendo. É ela, a Natureza, que nos invoca nos momentos da solidão, nos dá a inspiração para descrevê-la e nos faz esquecer a tristeza, nos momentos que a sentimos e observamos. Admirar sua beleza e usufruir os seus privilégios é tudo o que desejamos e queremos para que possamos dela alcançar e desfrutar a harmonia. Fico maluco sem saber o que fazer para conservá-la. Faça! Mas, fazer o que? Questiono-me.

Ai, somente uma sombra encobre o meu quarto, desligo o meu computador, apago a luz do abajur, e me dirijo ao leito. Apenas, penso! Uma tênue sombra da luz da rua ilumina o corredor que dá acesso ao quarto. Acompanho-a. Não tinha porque não segui-la, tenho a nítida impressão de que ela me força a acompanhá-la.

Sento-me numa cadeira ao lado da cama, diante de uma pequena biblioteca de livros e outros cadernos que me abastecem as noites de insônia, e abro um livro, exatamente àquele que estava lendo. “Solo para Ti”, de Luigi Augusto Oliveira. De repente, senti uma sensação que me forçava a não lê-lo. Não li. Voltei à estante e peguei outro livro. Mas, também não era esse o livro que queria o meu instinto. Cheguei à biblioteca encaminhado pela luz. Parei e fiquei à espera de que algo pudesse me iluminar. Peguei outro livro desta vez, “Dispersão”, de Mario de Sá Carneiro e antes de chegar ao final percebi que havia percorrido o tempo! Voltei ao passado. Neste instante, pude compreender todo aquele sentimento da alma e toda a frieza que escorria pelo meu corpo. Tive inveja de Sá Carneiro e repeti: “Eu fui alguém que passou e perdi-me diante de mim”. Sou impotente para salvar a Natureza!

Foi Tudo o Fim

“Enaltece as subidas da vida e esquece as descidas”

Pedro nunca imaginou que tudo fosse acontecer. Nunca passou pela sua cabeça tamanha desilusão. Ele chegou assim que o sol se pôs e a noite se aproximou. Já eram 20 horas e o dia ainda estava claro.- Esse horário de verão acaba confundindo a gente, dizia!..... não sei porque inventaram.! - Copiaram dos europeus. Dizem alguns técnicos que é necessário para a economia de eletricidade e que o setor passou por grande dificuldade de geração por falta de investimento do governo, enquanto outros discordam, não oferecendo, porém, qualquer solução plausível; apenas discordam. Pedro era apenas um brasileiro no meio de milhões que não têm poder de manifestar-se em coisa alguma. - A gente só ouve e lê que o Instituto Tal fez a pesquisa disso e daquilo-......Ele nunca foi parado na rua para sugerir ou opinar sobre um determinado assunto por qualquer órgão de pesquisas. Dizia sempre aos amigos, quando um assunto importante, como, por exemplo, pesquisa de opinião sobre eleições, era divulgada. - E olha que eu ando pelas ruas, repetia. O horário de verão é deveras inconseqüente para a hora de deitar e levantar. A hora de acordar é ainda escura, e a hora de deitar ainda é clara. Agora mesmo ainda é dia e já passa das vinte horas.

Nesta época de verão as chuvas em forma de tempestades são violentas e perigosas. Elas trazem sofrimento àqueles moradores das margens ribeirinhas de rios e córregos. É o caso de Pedro da Carroça, Pedro Ferreira da Silva Porto, esse era seu verdadeiro nome, quando aqui desembarcou de um ônibus vindo de Pernambuco, em janeiro de 1950. Assim que chegou deu sorte de conseguir emprego de auxiliar de pedreiro numa empresa construtora de edifícios. Permaneceu no emprego por 10 anos. Seu salário não era suficiente para fazer uma poupança e garantir o futuro. Nada guardou. Perdeu o emprego a partir do momento em que começou fazer exigências para aumento de salário. Desde então só penou! Pastou! Emprego nem pensar! Sem emprego e sem ter onde morar começou fazer parte das estatísticas de gente excluída da sociedade. Seu sonho acabou! Sem ter para onde ir e acomodar a família foi morar na favela, único lugar que conseguiu através de amigos. Pedro não tinha endereço...A rua aonde morava não tinha nome, o barraco não tinha número. Pedro não existia. Não tinha referência e nem identidade. Não tinha conta em banco....não tinha conta de água, de luz, de telefone...aliás a eletricidade dos barracos vinha através de gambiarra que os moradores da Favela costumam fazer.É perigoso, mas não há alternativa. Todos precisam da luz. “Faça-se a luz e a luz se fez, assim disse Deus na formação do mundo”.Alguns moradores da Favela do Abrigado não conseguem nem ter o básico dentro de casa: arroz, feijão, carne...quanto mais pagar conta de luz elétrica. Pedro fazia parte dos excluídos. Servia apenas para figurar nas estatísticas dos miseráveis moradores de favela.

Quando Pedro era jovem, estudante da escola rural na sua pequena cidade do interior de Pernambuco, ostentava alguma preferência por partidos políticos de esquerda, mormente o PCB, apesar de saber que a esquerda no Brasil só existe quando seus líderes estão presos. Quando estão na cadeia fazem planos de união, que vão se coligar, formar uma grande agremiação partidária de centro-esquerda e outras idéias. Balela! Quando ganham a liberdade cada um vai para seu canto e funda seu próprio bloco. Pedro não imaginava que tudo isso fosse acontecer! Ele morava no décimo barraco da Rua sem nome, na Favela dos Abrigados. Esse era o nome do bairro, se é que poderia chamar aquilo de bairro. O endereço servia apenas de orientação para seus vizinhos e amigos não confundirem o barraco com outro. Não era referência para provar sua cidadania. A Rua não existia nos cadastros dos órgãos públicos. Seu barraco tinha quarto onde dormiam seus quatro filhos, mais ele e a mulher, cozinha pequena e um banheiro também de dimensões minúsculas. Era tudo o que tinha como bem patrimonial. A construção do barraco foi possível graças à ajuda humanitária de seus vizinhos. Cada um trouxe um pedaço de madeira compensado, às vezes de origem clandestina, remanescentes de obras dos Poderes Públicos em construção no entorno da cidade grande, como Metrô, escolas, etc. Algumas delas foram surripadas na calada da noite. - Roubar do governo não é crime, dizia ele. – Todos roubam e ninguém toma providencia alguma. Ninguém vai preso. Viagens e mordomias dos governantes são as pessoas honestas que pagam, através de impostos que deveriam reverter-se em beneficio do povo, principalmente dele e de outros tantos desamparados na vida. Pedro não era cidadão. Estava isento de qualquer tributo. Não recebia nem a bolsa família,....

Mas nada disso era motivo para lhe tirar o humor. Vivia sorrindo, feliz da vida. Queria apenas ser um cidadão, mesmo carregando sua carrocinha de papelão que catava pelas ruas de São Paulo, pesada e desconfortável. Desejava apenas ter o suficiente para comer três vezes ao dia como prometera o Presidente da República durante a campanha eleitoral.

Tinha mulher e filhos, ainda menores de idade. Não tinha emprego fixo e nem renda familiar. Vivia de bicos que fazia aqui e acolá, quando conseguia. Quando não arranjava alguma coisa para fazer, como pintura, serviço de pedreiro ou jardinagem, se virava catando papelão, latinhas de refrigerantes e cervejas pelas ruas. Sua vida, assim como a de tantos outros brasileiros, era dramática, um desafio à dignidade humana. Ele driblava todos os percalços, desafiava as dificuldades e vencia todas as incertezas da vida com honestidade, dignidade e coragem, atributos que nunca lhe faltaram.

Naquela noite, ao chegar em casa, após atravessar a ponte de madeira que liga seu barraco à rua, tropeçou num pedaço de tábua exposto e quase caiu no córrego que circunda a favela e sobre o qual estão erigidas dezenas de palafitas. Não fosse a pronta ação de um vizinho, fatalmente teria caído naquelas águas escuras e fétidas.

Ao chegar ao barraco, a mulher Elvira e os filhos estavam a lhe esperar, famintos. Nada trazia além de um frango que havia ganhado ao ajudar descarregar o caminhão de um frigorífico. Ao menos o jantar daquela noite estava garantido.

Depois do jantar, foi deitar-se contemplando o brilho resplandecente da lua que penetrava através das frestas das tábuas do barraco. Dormiu e sonhou! O clarão da lua iluminava o barraco. Pedro sentia no sonho a claridade ardente daquela luz.

Via-se no sonho sentado ao redor de uma mesa, ao lado da mulher e dos filhos, numa noite de natal. Mesa farta: peru, galinha, coelho, lombo, frutas natalinas, farofa e carne de cordeiro. Até vinho tinha. Dois castiçais de três velas cada um fazia parte da decoração da mesa. Suas luzes eram incessantes e fortes.

Que ceia! Que noite! Que fartura! Sonhou feliz! O cansaço de tanto puxar a carroça foi seu inimigo crucial e responsável pele sono profundo. A luz forte das velas que via sobre a mesa, eram na verdade as chamas do fogo insano que consumia seu barraco.

Quando acordou, viu-se deitado numa cama, rodeado de enfermeiras apalpando-lhe o corpo queimado e dolorido. Perguntou pela mulher e filhos. Nada lhe responderam. Não lhe deram qualquer noticia do que havia acontecido, por mais que implorasse. Também não lhe disseram porque estava ali naquele hospital. Só sentia o corpo arder, Sabia que algo ruim havia acontecido. Sob efeito de calmante voltou a dormir.

Após quinze dias de internação no hospital público, Pedro voltou às ruas de São Paulo, puxando sua carrocinha, catando papelão e latinhas de cerveja e refrigerantes. Além de ganhar o sustento, ao mesmo tempo prestava serviço à prefeitura, recolhendo o material que fatalmente iria despencar nos rios e córregos da cidade. Contudo, a lembrança daquela fatídica noite não lhe saía do pensamento em momento algum. As noites seguintes, agora passadas embaixo de viadutos, já que seu barraco fora totalmente destruído pelo fogo, sentia o medo, a tristeza e o remorso. Remorso por ter dormido demais. Imaginava que se tivesse se mantido acordado, poderia evitar a tragédia. Por isso, de tanto se sentir culpado, buscou refúgio no álcool e nas drogas, vícios que sempre abdicou na vida. As noites seguintes mantinha-se acordado à base da cachaça e do crak, perambulando pelas ruas escuras e desertas da cidade.

Uma noite embebedou-se tanto, que ao levantar-se do leito da rua aonde caíra, sentiu os pingos gélidos do orvalho da madrugada caírem sobre sua cabeça ressecada do efeito etílico da noite anterior. Ele andava pelas ruas, absorto, como quem procura algo ou busca alguma coisa capaz de fazê-lo esquecer daquela trágica noite que fulminou sua família. Tentava esquecer, mas não conseguia, por isso vagueava sem rumo pelas madrugadas frias e desertas, quando só o vento úmido soprava-lhe os cabelos e sussurrava ao seu ouvido como se quisesse adverti-lo de algo que não conseguia entender. Pedro só queria esquecer o passado, riscá-lo da memória. Infelizmente, não houve tempo para isso. Mais uma vez o destino cruel, através das mãos de um motorista tão embriagado quanto ele, ceifou-lhe de vez a vida.

Foi-se o fim de Pedro.

J.Miranda Filho.

Natal de 2006.

Eu Queria Ser...

aos meus irmãos

EU QUERIA SER, IRMÃO...

A luz para iluminar o caminho daqueles que andam na escuridão...

A água para limpar a vergonha dos que praticam a iniqüidade...

O som estridente capaz de fazer silenciar a voz dos canastrões e falsos benfeitores da ordem...

O amanhecer de um novo dia para trazer a paz e harmonia aos lares dos necessitados...

A luz para dissipar a sombra que escurece a vida dos que necessitam de um emprego...

A noite para acalentar a todos nós, que durante o dia derramamos o suor do nosso corpo sofrido, porem, honesto, em busca do alimento para o nosso lar...

O dia cheio de esperança para a realização do desejo aspirado...

A vida para incentivar os enfermos a vivê-la...

A lágrima, para num golpe de consciência, derramar na face dos ímpios detratores da natureza e da verdade...

O sorriso para encantar o rosto e eliminar a amargura dos que sofrem a derrota e a injustiça...

A justiça para conceder aos irmãos do mundo inteiro a certeza do julgamento perfeito...

A honestidade para mostrar aos incautos a importância de tê-la...

O amor para unir a todos e incentivá-los a praticar...

O perdão para dar àqueles que nos detratam em vão...

O convencimento para reunir os irmãos numa uníssona vontade de ajudar àqueles que de nós necessitam...

Eu queria ser tudo isso de uma só vez, contudo, se não conseguir eu quero ao menos ser seu leal amigo e irmão de fé, para dar-lhe um abraço, olhar nos seus olhos sem sentir remorso de fazê-lo, e dizer-lhe que o amo e que sua amizade é muito importante para mim, mas, ao mesmo tempo, tenho vergonha de encarar alguns desempregados, enquanto eu tenho emprego e não poder ajudá-los. Tenho vergonha de alguém me pedindo esmola na rua e as autoridades instigando-me a não dá-la, ao invés de buscar solução. Tenho vergonha de sentir-me mais sábio, enquanto milhares de brasileiros mal sabem o bê-á-bá. Tenho vergonha de não pedir perdão a Deus pelo erro que cometi, e aos irmãos pela falsa modéstia.

Tenho vergonha de comer três vezes ao dia, enquanto, outros tantos brasileiros não têm o que comer.

Queria ser a razão, a verdade e a justiça, a fraternidade, a liberdade e a igualdade, para nivelar o conceito social.

Ver a vida, os irmãos e as pessoas é uma particularidade, mas, viver de bem com a vida, amando a todos os semelhantes de todas as maneiras e intensidade, é detalhe que faz a diferença. Vamos praticar essa diferença. Amemos-nos e ajudemos-nos, principalmente a quem está mais próximo de nós.

É tudo o que desejo e quero dos irmãos, se possível.